terça-feira, 26 de junho de 2012

O vermelho do beijo.

   




       Quando abriu os olhos naquela manhã escura, já sabia que não deveria ter acordado. Piscou uma, duas vezes, até que virou-se para o lado, contemplando o quadro abstrato que repousava na parede branquíssima do seu quarto. Bocejou.
      Pensou mais uma vez se não seria melhor ficar deitada, afinal já sabia os planos que tinha para o dia de hoje. Bocejou de novo e decidiu levantar-se. Iria cumprir o que estava para fazer, mas sem antes escovar os dentes. Odiava aquele gosto na boca, de ferro.
      Foi até a cozinha e observou toda aquela mansão na qual residia. As paredes eram todas em tons de cinza e branco neve, os móveis eram em um estilo futurista, muito acrílico e inox. A lareira havia sido deixada acesa na madrugada anterior por seu marido, e por isso a sala emanava um calor gostoso para o dia que se apresentava pelos vidros panorâmicos de toda a sala.
      Fez seu café da manhã e sentou-se à mesa olhando para o relógio, contando os minutos para seu marido descer as escadas e encontrar-se com ela, o que não tardou a acontecer.
     
      - Bom dia, querida. - Um beijo na testa com um sorriso em resposta.
      - Senta pra tomar café comigo. - Falou ela com sua voz suave, quase aveludada.

      Ela vestia uma bela camisola longa cor de champagne com um decote profundo entre os seios e amarrado com uma luxuosa fita de cetim nas costas. O marido sentou-se de frente para ela, do outro lado da mesa, ornando um sorriso permanente de canto de boca, coisa que a irritava profundamente, tendo em vista que esse era o exato sorriso que ele usava para persuadir os homens da alta sociedade que estavam sempre a sua volta, o rondando pelas suas aquisições.
      Ele a olhava nos olhos, com aquela luxúria estampada em suas pupilas, que mais pareciam de um felino. Era ágil, atlético, vestia somente uma boxer de cor branca, mostrando o peitoral e abdome bem definidos. Ainda possuía aquela cor bronzeada que a fez se apaixonar a primeira vez que o viu. Piscou voltando sua cabeça para o prato logo abaixo. Sentiu dor no estômago e gemeu.

      - Sabe, meu amor, conheço esse gemido. - O marido foi se aproximando e a beijou em um dos ombros desnudos enquanto a esposa agonizava de dor.

      Aquilo não estava nos planos da mulher, que já estava com a faca na mão pronta para fazê-la atravessar o peito e o abdome perfeito do marido. Agora ela sentia uma dor esquisita no estômago, algo queimando. Estava certa de que não era azia.
      O marido pegou-a no colo com uma risada nasalada e deitou-a no tapete felpudo de pelo de ovelha da sala. Ela virou a cabeça para o lado, sentindo um baque na nuca. Fechou os olhos e abriu lentamente, sentindo a dor aumentar. O marido só a encarava com os olhos azuis fuzilantes e o sorriso irritante nos lábios. Ela parecia não ter mais voz.

      - Querida, não há mais espaço para você aqui. Nunca houve. - E ria cada vez mais, enquanto a mulher sentia algo sair de sua boca, algo líquido.

      A mulher, com a cabeça virada para o lado, tinha a visão das taças de vinho, sujas na noite anterior, e de fundo, o fogo. As chamas pareciam dançar lentamente e ela permanecia com os olhos parados, olhando-as. Lembrou-se da faca em sua mão, e percebendo que esses seriam seus últimos atos, enfiou-a no abdome do marido, que gritou.
      Ela nem ao menos virou para o lado, o gosto ferroso que vinha sentindo agora parecia mais intenso, junto com algo mais doce, o gosto da vingança. Sentiu que o marido agora tossia e se aproximava dela, até que conseguiu olhá-la nos olhos. Ele continuou com o sorriso débil estampado, mas dessa vez o sorriso possuía o vermelho incontestável do sangue.
      O homem, ainda sorrindo, encostou sua testa na dela, e com um suave toque a beijou onde o veneno escorria. Ela já não tinha muitos dos sentidos, mas pode vê-lo e sentir seu beijo, suave, mortífero.

      - Você nunca terá meu coração. Até breve, querido. - Ela disse com suas últimas forças, antes de mergulhar na extrema escuridão.
     

terça-feira, 5 de junho de 2012

They say it changes when the sun goes down



      Tenho sentido as coisas mudando rápido demais. Não que elas não tenham que mudar, nem que começaram a mudar agora, mas talvez eu nunca tenha percebido o tanto que as coisas simplesmente deixam de ser as mesmas.
      O que me chateia é que as conversas mudaram, as pessoas mudaram, eu mudei e você também. E só hoje acordei e percebi que na realidade, tudo que eu fiz até hoje foi mudar. Perceba porque:
      Bom, eu sou natural de Porto Alegre, acostumada a ficar na casa da minha vó, acostumada com uma rotina bem comum para uma criança. Acordava cedo, meus pais me levavam para a casa de minha vó materna, almoçava, ia para a escola, voltava, fazia os deveres e logo já era hora de ir para minha casa; dormia, e fazia tudo de novo. Até que certo dia recebi uma notícia que mudou minha vida. Minha primeira mudança. Eu iria morar em outro estado, particularmente longe do meu. Fui para Minas Gerais.
      Como minha rotina mudou, eu mudei; sem contar que estava me tornando uma adolescente a essa altura do campeonato. Em Minas não descobri logo de cara a pessoa maravilhosa que é o mineiro; convivi com pessoas arrogantes em uma escola na qual eu era, definitivamente, um patinho feio. Ou talvez não, eu era só diferente. E conforme o passar de um ano, mudei de novo. Segunda mudança. Conheci pessoas incríveis - das quais me comunico até hoje - e aprendi o real sentido de simplicidade, humildade e amizade. Com essas pessoas eu aprendi que independentemente das diferenças, podemos criar grandes amizades.
      Como se em um piscar de olhos, eu conheci muitas pessoas, muitos amigos e outro baque me veio 4 anos depois. Eu iria para São Paulo, a terra da garoa, dos prédios enormes, pessoas atarefadas e, principalmente, do trabalho. Foi minha terceira grande mudança.
      Em São Paulo, talvez, eu tenha sido a pessoa que mais se destonou do meu eu. Ainda vivo nessa grande cidade, mas alguém lá dentro - talvez minha alma - resolveu que não seria bom pra mim se eu continuasse nas sombras, com medo e uma revolta que mal cabia no peito, assim como eu fiz no meu primeiro ano. O tempo foi passando e claro, eu fui, como de habitual, mudando. Conheci pessoas maravilhosas - das quais ainda não sei se posso afirmar certamente de que continuarei a me comunicar pro resto da minha vida - e que, de certa forma, me fizeram perceber que sim, a vida de São Paulo é individualista, mas ainda existe a amizade e amor, mesmo que de uma forma meio torta.
      Onde eu quero chegar é que a mudança ocorre. Mas ainda não sei ao certo se gosto. Houve uma época na qual eu ansiava a mudança. Precisava conhecer, saber, cheirar, sentir, provar.. tudo novo! Acontece que hoje me vejo triste por certas coisas serem tão facilmente mudadas; assim como uma pessoa. Talvez nem a pessoa em si, mas a maneira como ela te trata, a maneira como você percebe essa pessoa. As vezes é até coisas, puramente, da minha imaginação, que me prega peças que só outro texto para poder contar-te. Digo... você percebe quando uma palavra ou um gesto que antes era de costume entre duas pessoas começa a se esvair. Ele está ali, tão tocável, tangível... e aos poucos vai se tornando uma fumaça; você ainda pode vê-lo, mas tocar já é difícil... até o dia que você percebe que, quase imperceptivelmente, ele se foi.
      Essas mudanças são definitivas, e isso me causa medo. É por isso que sinto saudades, talvez... Uma saudade excessiva. Minha cabeça funciona sempre calculando minhas mudanças; e claro, das pessoas a minha volta.
      Eu não queria mudar. Eles dizem que isso muda quando o sol se põe...

      Minha quarta grande mudança diária.