domingo, 28 de outubro de 2012

Responderia sim.







      Nunca soube ao certo se acreditava ou não no destino; aquele traço que nos é dado antes mesmo de nascermos, e que não há a possibilidade de refazê-lo. Mas outro dia tive a comprovação de que, pelo menos, alguns momentos de nossa vida aparecem porque estavam escritos assim. Deveria acontecer exatamente daquele jeito; sem tirar, nem pôr.
      Fui assistir a uma peça de teatro outro dia e tive a nítida impressão, ao ir embora, de que estava exatamente no local onde eu deveria estar. A peça falava, basicamente, sobre morte. E na morte, nada mais comum que pensar na vida. Foi o que eu fiz.
      Estava a atriz no chão, encenando um suicídio, enquanto uma outra pousava sua cabeça delicadamente ao lado do ouvido da "morta". Foi quando eu a ouvi dizendo: "Se eu te desse uma oportunidade, só uma, de viver de novo tudo o que você viveu, com as mesmas felicidades, as mesmas tristezas... tudo igual. Você toparia?". Me peguei gritando mentalmente que sim.
      Cheguei em casa e pensei diversas vezes sobre tudo que havia se passado na minha vida; as mudanças, as felicidades e, principalmente, as tristezas. É engraçado e até mesmo clichê pensar que se não fosse tudo isso que vivi, eu não saberia o que sei hoje; eu não seria quem sou.
      Tenho esse sentimento saudoso pelos tempos passados, mas pensava que o que havia acontecido comigo até esse exato momento era, em certas partes, triste. Foi no meio desse paradoxo que percebi que, se sinto saudade, é que tudo que me aconteceu foi bom. É a questão de você conseguir o que precisava, não o que queria.
     Eu precisava aceitar que tinha que crescer, precisava amadurecer. Perceber que as coisas na minha volta eram boas. Foi como uma lição; um aviso. Se você começa a pensar que as coisas que te aconteceram foram ruins, tudo perde sentido, você fica preso em uma condição de vítima. É aí que aparece aquela bola de neve - quanto mais vitimizado se é, mais parece que o mundo conspira contra você.
      Me senti como em uma manhã de chuva, quando você abre os olhos de um pesadelo e percebe que tudo está bem, está no lugar que sempre esteve, e que o monstro, na realidade, não existe.
      Abri meus olhos. A vida continuou do mesmo jeito de sempre, com um único porém...
     
      A vida fazia sentido.
   

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Gelo que queima.






      Se vestiu como de costume; um vestido florido logo abaixo dos joelhos sem carne, uma sandália baixa branca e o laço discreto, feito de cetim rosa claro, nos longos cabelos pretos. Enquanto se olhava demoradamente no espelho, analisando todas as suas não-curvas, o padrasto gritava-lhe o nome no andar de baixo. Deu uma última olhada no fundo dos próprios olhos; cinzas, sem vida, azuis um dia em sua vida.
      Desceu as escadas quieta, e de rabo de olho observou o padrasto que já estava em seu lugar corriqueiro, no canto da sala, em sua poltrona de couro - comida pelo tempo -  fumando um de seus vários cigarros.
      Aquela menina branca demais, obediente demais devia isso ao homem asqueroso e totalmente acima de qualquer suspeita que era o padrasto. Olhando-o de longe parecia um sujeito pacato; quase a fazia esquecer do dia em que levou sua mãe ao hospital marcada por mais uma de suas loucuras. A mãe, dali não saiu. Lembrava-se do cheiro do hospital de pequena cidade, que não obtinha os recursos que sua mãe necessitava. E ela, muito menos dinheiro para mudá-la de lugar. Um cheiro de morte.
      Voltou de seus devaneios com mais uma chama queimando no olhar acinzentado.
      - Me chamou? - Perguntou a menina.
      - Ora, ora. Já estava impaciente. Quero que vá até  mercado e me busque mais um maço de cigarros. Faria isso por mim? - O homem a sorriu.
      - Faço o que for necessário. - A menina deleitou-se em cada sílaba, sorrindo de volta.
      Saiu de casa arquitetando cada minuto de sua volta. Cada passo, cada tropeço. Cada vitória.
      No mercado comprou, além do maço, uma tesoura, um batom e uma faca de churrasco. Pagou tudo e fez o caminho de volta para casa saltitando e cantarolando uma música que sua mãe costumava lhe cantar.
      Chegou em casa, entregou o maço de cigarros ao seu tão odiado padrasto e disse que ia subir para banhar-se. No banheiro branco de tanta limpeza - que a própria menina fazia -, demoradamente tirou o resto das compras de sua sacolinha, pondo-as alinhadas em cima da bancada da pia. Pegou a tesoura e, encarando o rabo de cavalo pelo espelho, cortou-lhe da cabeça, deixando que os fios lisos e longos se espalhassem na imensidão branca do chão gélido. Logo, foi cortando o que restava de seu cabelo até que ficasse parecendo um menino, com cabelos curtos, pretos e bagunçados. Entrou para o banho e lavou-se com água fervendo; assim como estava seu corpo. Fervendo.
      Com toalhas também brancas secou-se e foi até seu quarto, tirando debaixo da cama um corselet vinho. Vestiu-se com ele, uma calça de couro preta, um salto alto, agitou os cabelos - agora curtos - com as mãos e sorriu. Voltou ao banheiro, pegou a faca e parou em seu espelho para observar-se novamente. Agora ela a desejava. Seus olhos eram de um azul cortante, como gelo. Mas gelo também queima. Agora ela tinha curvas. Agora ela era quem sempre quis ser. Ela inteira queimava.
      Desceu as escadas e observou o padrasto de longe, na poltrona, quase de costas para ela. Se aproximou lentamente, sem fazer barulho. Com as mãos, abraçou-lhe a cabeça e cochichou:
      - Boa noite, padrasto.
      Sem que ele pudesse responder, passou-lhe a faca pela garganta, observando o sangue quente e rubro que escorria sobre a camiseta suja de molho de tomate que ele vestia.
      Séria, ela observava enquanto o padrasto morria. Quando finalmente ele parou de se mexer estupidamente, ela pegou um cigarro do maço que jazia ao seu lado, manchando-o de sangue e acendeu-o, soltando uma baforada no rosto do morto. Subiu até o banheiro, e com uma risada, quase que maquiavélica, passou o batom escarlate nos lábios rachados.
      Foi assim que saiu andando pelas ruas escuras. Rindo. Chorando de rir.
      A boca manchada de vermelho, com o gosto da nicotina.