segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Gelo que queima.






      Se vestiu como de costume; um vestido florido logo abaixo dos joelhos sem carne, uma sandália baixa branca e o laço discreto, feito de cetim rosa claro, nos longos cabelos pretos. Enquanto se olhava demoradamente no espelho, analisando todas as suas não-curvas, o padrasto gritava-lhe o nome no andar de baixo. Deu uma última olhada no fundo dos próprios olhos; cinzas, sem vida, azuis um dia em sua vida.
      Desceu as escadas quieta, e de rabo de olho observou o padrasto que já estava em seu lugar corriqueiro, no canto da sala, em sua poltrona de couro - comida pelo tempo -  fumando um de seus vários cigarros.
      Aquela menina branca demais, obediente demais devia isso ao homem asqueroso e totalmente acima de qualquer suspeita que era o padrasto. Olhando-o de longe parecia um sujeito pacato; quase a fazia esquecer do dia em que levou sua mãe ao hospital marcada por mais uma de suas loucuras. A mãe, dali não saiu. Lembrava-se do cheiro do hospital de pequena cidade, que não obtinha os recursos que sua mãe necessitava. E ela, muito menos dinheiro para mudá-la de lugar. Um cheiro de morte.
      Voltou de seus devaneios com mais uma chama queimando no olhar acinzentado.
      - Me chamou? - Perguntou a menina.
      - Ora, ora. Já estava impaciente. Quero que vá até  mercado e me busque mais um maço de cigarros. Faria isso por mim? - O homem a sorriu.
      - Faço o que for necessário. - A menina deleitou-se em cada sílaba, sorrindo de volta.
      Saiu de casa arquitetando cada minuto de sua volta. Cada passo, cada tropeço. Cada vitória.
      No mercado comprou, além do maço, uma tesoura, um batom e uma faca de churrasco. Pagou tudo e fez o caminho de volta para casa saltitando e cantarolando uma música que sua mãe costumava lhe cantar.
      Chegou em casa, entregou o maço de cigarros ao seu tão odiado padrasto e disse que ia subir para banhar-se. No banheiro branco de tanta limpeza - que a própria menina fazia -, demoradamente tirou o resto das compras de sua sacolinha, pondo-as alinhadas em cima da bancada da pia. Pegou a tesoura e, encarando o rabo de cavalo pelo espelho, cortou-lhe da cabeça, deixando que os fios lisos e longos se espalhassem na imensidão branca do chão gélido. Logo, foi cortando o que restava de seu cabelo até que ficasse parecendo um menino, com cabelos curtos, pretos e bagunçados. Entrou para o banho e lavou-se com água fervendo; assim como estava seu corpo. Fervendo.
      Com toalhas também brancas secou-se e foi até seu quarto, tirando debaixo da cama um corselet vinho. Vestiu-se com ele, uma calça de couro preta, um salto alto, agitou os cabelos - agora curtos - com as mãos e sorriu. Voltou ao banheiro, pegou a faca e parou em seu espelho para observar-se novamente. Agora ela a desejava. Seus olhos eram de um azul cortante, como gelo. Mas gelo também queima. Agora ela tinha curvas. Agora ela era quem sempre quis ser. Ela inteira queimava.
      Desceu as escadas e observou o padrasto de longe, na poltrona, quase de costas para ela. Se aproximou lentamente, sem fazer barulho. Com as mãos, abraçou-lhe a cabeça e cochichou:
      - Boa noite, padrasto.
      Sem que ele pudesse responder, passou-lhe a faca pela garganta, observando o sangue quente e rubro que escorria sobre a camiseta suja de molho de tomate que ele vestia.
      Séria, ela observava enquanto o padrasto morria. Quando finalmente ele parou de se mexer estupidamente, ela pegou um cigarro do maço que jazia ao seu lado, manchando-o de sangue e acendeu-o, soltando uma baforada no rosto do morto. Subiu até o banheiro, e com uma risada, quase que maquiavélica, passou o batom escarlate nos lábios rachados.
      Foi assim que saiu andando pelas ruas escuras. Rindo. Chorando de rir.
      A boca manchada de vermelho, com o gosto da nicotina.

Um comentário:

  1. Marina, esse conto é um diamante bruto.
    A forma como você define os personagens, narra a ação e encerra a história é muito boa, perfeita para um conto: pontual, concisa, dinâmica.
    Adorei como você trabalha a transformação da menina. Me veio na cabeça na hora aquela música da Rita Lee: "Um belo dia resolvi mudar..."
    Só acho que falta um pouco da sua personalidade nesse conto. Tipo aquele: "Ahá! Esse conto é da Rappa!" É algo que sinto quando leio suas crônicas.
    Como eu disse, é um diamante bruto, precisa ser melhor lapidado. E pelo visto você tá quase lá.
    Abços.

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